QUATRO
MITOS DO BRASIL ATUAL
1. A função primordial
das análises de conjunturas é oferecer uma leitura realista, sistemática e
articulada de uma determinada situação geopolítica, política, econômica e
social. Os diferentes agrupamentos políticos se orientam a partir do cruzamento
das análises de conjunturas com os princípios e propósitos que lhe são
particulares. Neste sentido, organizações políticas e sociais, diferentes ou
até mesmo rivais, podem produzir análises de conjuntura bastante similares,
sem, contudo, serem convergentes no ponto de vista da ação.
2. A análise de
conjuntura possibilita a prática consciente e planejada num determinado
contexto. É certo que não existe um modelo de análise de conjuntura universal,
tampouco este é o objetivo a ser perseguido, porém a mesma não pode ser
construída arbitrariamente, sem critérios e referências articuladas e
hierarquizadas a partir do real, das relações sociais concretas. Logo, as
referidas análises são, a um só tempo, necessárias e problemáticas. Necessárias
porque em sua ausência não há ação consciente na disputa política coletiva;
problemáticas porque sempre estarão sujeitas às limitações da apreensão do
real.
3. Outro problema
recorrente é que a clareza do conceito não é suficiente para informar ação
prática, é necessário ter fidelidade ao momento histórico, ou seja, fidelidade
às possibilidades que são reveladas no processo de análise de conjuntura. Em
outras palavras, é preciso se comprometer com as análises que fazemos e
levá-las às últimas conseqüências. Nem o intelectual, nem as organizações de
militantes podem escapar desta verdade, sob o risco de cair no descrédito ou
apontar por caminhos fora do curso ou das exigências do tempo presente.
4. No entanto, de forma
sub-reptícia, alguns setores confundem a análise de uma situação concreta com
agitação ideológica, auto-proclamações ou mesmo justificativas para a inércia e
o abandono da iniciativa política. Sem nenhum compromisso com a situação
conjuntural, sem nenhuma responsabilidade com a organização e mobilização das
massas, sem nenhum cuidado com as condições de vida das maiorias, estas
posições infames, ao serem repetidas cotidianamente, se transformam em culturas
políticas setoriais (ou internas a uma determinada organização ou movimento).
Toda cultura baseada em construções abstratas, em princípios fechados e retro-
alimentados pela crença de que sua bandeira e seus valores são “eleitos” e a
razão não reside nos outros, inevitavelmente cria seus mitos, laicos ou não.
Este fundamentalismo secular, com uma suposta base científica, gera distorções
substantivas nas análises de conjunturas que, no lugar de verificar os
contornos da realidade, são reduzidas a pequenos instrumentos de legitimação de
um determinado discurso.
5. Quais seriam então
alguns importantes mitos em circulação no momento atual? Passamos a discutir
alguns deles.
Mito
1: “A crise mundial é financeira”
6. Aqueles que defendem
a noção na qual a crise que foi revelada ao mundo em 2008 é de natureza
financeira, criada por uma suposta “bolha” especulativa no setor imobiliário,
estão defendendo explícita ou implicitamente a postura liberal, que recolhe
“problemas no capitalismo” sem, contudo, entender ou admitir a dinâmica do
próprio circuito de reprodução do capital, necessariamente concentrador e
desequilibrado. Alguns defendem que o problema foi o descuido para com a
chamada “economia real”, ou seja, industrial. O problema desta análise é óbvio,
a separação entre capital bancário e industrial é apenas teórica, na realidade
trata-se do mesmo capital em etapa diferente de seu ciclo de reprodução
ampliada. A ideia de “bolha” pretende isolar artificialmente um determinado
momento do circuito de reprodução do capital, dando uma feição isolada para o
suposto ponto de origem da crise. Ambas as análises procuram acobertar o que é
principal: A crise atual é uma crise de reprodução do capital.
7. Não há dúvida que as
dificuldades enfrentadas ultrapassam o limite do setor financeiro, pois existe,
sobretudo, uma crise de alternativas. Os governos não conseguem respostas
confiáveis para a bancarrota das economias centrais. Ao que tudo indica não
poderão produzi-las com o repertório liberal. Ou seja, apostando no ajuste
fiscal, em medidas restritivas de direitos e injeção permanente de recurso nos
bancos. Para os trabalhadores isto tem significado especialmente a supressão de
direitos trabalhistas e garantias sociais históricas, que foram conquistas de
muitos anos de luta. Este ataque do capital orquestrado pelo Estado aos
direitos dos trabalhadores soma-se às estratégias existentes de transferência
de valor da periferia ao centro e reforça os elementos contra-tendenciais da
crise capitalista, ou seja, os elementos que invertem o movimento tendencial de
redução da taxa de lucro na produção capitalista. O resultado imediato desta dinâmica
só poderia significar mais centralização do capital à custa do empobrecimento
crescente dos trabalhadores. Desta forma, em países como Grécia, Espanha,
Itália e Inglaterra, por exemplo, os trabalhadores retomaram sua agenda de
lutas. Também no Oriente Médio, em especial nos países árabes da região, tem
havido um acirramento da luta de classes. O que move os trabalhadores do mundo
é a luta pela defesa de suas conquistas trabalhistas e sociais e a negação de
um sistema que, embora nunca tenha produzido tanta riqueza, o faz concentrando
renda, elevando o desemprego, mercantilizando direitos, intensificando a
pobreza e elevando o grau de exploração da força de trabalho.
8. A resposta às
condições acima expostas e à conseqüente deterioração da legitimidade das
estruturas de poder político se expressa nas mobilizações de massas cada vez
mais internacionais e freqüentes. No entanto, a indignação, que assume feições
anticapitalistas, ainda não tem conseguido apontar para a superação do sistema.
9. Faltam proposições
capazes de disputarem a preferência das maiorias, oferecendo indicações de uma
alternativa à crise civilizatória. Depois de dizer “não”, é hora de pensar: “e
agora, para onde vamos?”.
10. O capitalismo, mesmo
com sérias dificuldades de reprodução, ainda é hegemônico e não pode ser
subestimado. Cabe às organizações revolucionárias disputarem uma nova concepção
de humanidade e trabalhar da melhor forma possível o momento atual. Certamente
a correlação de forças ainda é desfavorável à classe trabalhadora, mas pelo
menos a situação oferece um novo terreno de combate que pode implicar em uma
retomada da ofensiva política.
Mito
2: “A crise não chegou ao Brasil”
11. Não é coincidência
que a tese da crise financeira seja acompanhada por outra: a de que a crise não
chegou ao Brasil. Defende-se que, graças à atuação decidida e responsável do
governo juntamente com a força de nosso mercado interno foi possível blindar a
economia brasileira. Uma análise um pouco mais rigorosa – e histórica – revela
que esta tese não passa de pura apologia ao governo e à manutenção do status
quo, que tem na falácia de “um mercado interno em crescimento” e das
“desigualdades sociais em diminuição” suas justificativas ideológicas. Os
aparelhos ideológicos do Estado Brasileiro têm obtido relativo sucesso na
tarefa de convencer a população brasileira (inclusive grande parte dos partidos
e organizações de esquerda) de que o crescimento do mercado interno é produto
de sua política social de distribuição de renda. Sem distribuir ou democratizar,
no entanto, os fatores de produção desta renda, mantendo a transferência de
valor do trabalho ao capital por meio de uma estrutura tributária regressiva e
sem garantir o crescimento do poder de compra dos salários dos trabalhadores, o
governo se vê obrigado a retirar a remuneração dos lucros de suas estatísticas
para poder assim produzir uma diminuição da desigualdade social que é ilusória.
12. Se analisarmos a
partir da principal categoria marxista – a totalidade – esta apologia se desfaz
rapidamente. A acumulação capitalista é mundial. Organiza e coordena a
acumulação do capital em cada país do globo, justamente de maneira desigual e
combinada. Se houve no centro deste sistema uma crise de reprodução do ciclo do
capital é óbvio que esta crise não deixaria de ter efeitos em todos os países
capitalistas.
13. O que comumente se
chama de crise é um momento específico da verdadeira crise. Esta desorganização
generalizada dos mercados financeiros, que rapidamente “afetou” a indústria e o
comércio é somente a válvula de escape de uma panela de pressão que há muito
tempo está no fogo. A essência da crise já vinha ocorrendo antes, ou seja, a
insuficiência das taxas de exploração em continuarem remunerando crescentemente
o capital mobilizado. Quando isto ocorre por um tempo prolongado, a expressão
da crise aparece assustadoramente aos olhos dos analistas de superfície.
14. O mundo capitalista
vive hoje, portanto, uma dupla necessidade: desvalorizar brutalmente o capital
já existente e aumentar as taxas de exploração. Esta necessidade é urgente
principalmente nos territórios em que a situação é mais difícil, dado as
dificuldades de aumentar as taxas de exploração internamente: Europa, EUA,
Japão. Portanto, ao mesmo tempo em que lentamente estas dificuldades são combatidas,
a periferia é convocada a dar sua contribuição por meio das transferências
internacionais de valor, ou, desde nossa perspectiva: por meio das perdas
internacionais.
15. O Brasil, como hoje
já é evidente, não poderia fugir das necessidades da acumulação mundial de
capital (exceto com uma proposta de alternativa ao capitalismo). Em primeiro
lugar, a clássica política de contenção da desorganização financeira foi
tomada: uma transferência gigantesca de excedente econômico foi realizada, via
Estado, para os grandes monopólios: seja por meio da isenção fiscal, que
contribui para a realização da mercadoria e para redução do custo da força de
trabalho; seja por meio da injeção de dinheiro público captado a preços
altíssimos pelo governo (taxa de juros selic) no mercado nacional e
internacional, mas oferecido a preço baixo por meio de uma política do BNDES
que favorece um seleto grupo de monopólios nacionais e estrangeiros. A expansão
do crédito tem contribuído também para oxigenar os lucros das grandes empreiteiras
(setores imobiliário e de construção civil) e das multinacionais de setores
como eletro-eletrônicos e de linha branca, automobilístico e de aviação civil,
à custa, no entanto, de um endividamento familiar crescente (segundo dados da
Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, 65% das famílias
brasileiras estão endividadas), que já compromete significativa parcela da
renda e do patrimônio dos trabalhadores brasileiros, intensificando uma vez
mais a transferência de sua renda ao grande capital. Como esta expansão do
crédito tem um padrão de financiamento estrangeiro, a captação de recursos no
exterior que o BNDES realiza sistematicamente tem contribuído, também, para o
endividamento do Estado e o agravamento da dependência em nosso país. O próprio
BNDES, aliás, alterou em 2006 seu estatuto para permitir que este crédito
financie empreiteiras, financeiras e o agronegócio brasileiro.
16. Entretanto, esta
rápida retomada keynesiana teve vida curta. Se entre 2007 e 2010 alguém se
iludiu que a política econômica da estabilidade - que na verdade sustenta o
pacto da classe dominante desde o início do plano real, ou seja, a “santíssima
trindade” da inflação, câmbio e juros: se alguém teve a ilusão de que
finalmente estava sendo alterada, foi obrigado a tomar uma nova dose de
realismo imposta, desta vez, pelo governo da presidente Dilma. Ora, se a crise
não chegou ao Brasil porque as atuais medidas de austeridade, de contenção do
aumento salarial e dos gastos sociais? Porque a retomada do aumento da taxa de
juros que havia sido reduzido de 19,75 pontos percentuais desde agosto de 2005
para 8,75% a.a em julho de 2009, mas que já foi rapidamente elevado para 12,5%
em julho deste ano?
17. A crise está,
portanto, obviamente afetando o Brasil que assim como todas as nações do mundo
está sendo chamado à “responsabilidade” de salvar os países centrais. Algumas
nações, no entanto, têm mais capacidade de se defender contra a desvalorização
monetária dos países centrais – forma com que estes países classicamente
encontram para se apropriar do excedente econômico produzido em outros países.
Todavia, o nível de integração subalterna do Brasil à economia mundial não faz
dele uma destas nações.
18. A primeira expressão
que nos demonstra isto e que mais “liga” o Brasil à crise é a dívida pública.
Não é paradoxal que justamente durante uma crise financeira, de escassez de
crédito, ou seja, de escassez monetária nosso país seja invadido por uma
enxurrada de dólares? Este paradoxo aparente revela, na verdade, toda falácia
da economia liberal, pois, como já dissemos não se trata de uma crise
financeira, de crédito, ou bolha especulativa, mas sim de uma crise de
reprodução do capital (produção e apropriação do valor). Se o epicentro desta
crise são os países centrais é natural que o capital que sobra nestes países
busque se apropriar de mais-valor produzido por trabalhadores de outros países.
A entrada de capitais externos no país ocorre com este objetivo. Seu principal instrumento: a dívida pública
interna (principalmente) e externa. O Estado brasileiro compromete anualmente
metade de seu orçamento para essa gigantesca transferência de valor. Valor
produzido pelos trabalhadores e trabalhadoras de nosso país e que está sendo
utilizado para tentar salvar a acumulação nos países centrais. E tudo isto por
um único motivo: a estabilidade da acumulação nestes países é pressuposto da
estabilidade da nossa classe dominante.
19. A estabilidade
brasileira, portanto, está assentada nesta gigantesca transferência de valor,
nas famosas perdas internacionais do nosso país. Estas se dão principalmente
por meio da remuneração da dívida pública, mas não somente. Uma rápida olhada
na evolução dos indicadores do Balanço de Pagamentos revela outras de suas
formas. Se em 2003 o Brasil transferiu US$ 18,6 bi em “renda de investimento”,
em 2010 essa cifra passou para US$ 40bi; na rubrica “lucros e dividendos –
investimento direto” passou de US$ 4 bi para US$23,6 bi; e o de “lucros e
dividendos – investimento em carteira” foi de US$1,5bi para US$6,7bi. Esses
dados demonstram como nosso país tem contribuído com a necessidade de
acumulação dos países centrais em detrimento das necessidades do nosso povo.
Não é coincidência, portanto, que justamente desde 2008 – ano de estouro da
crise – o saldo de transações correntes do balanço de pagamentos tenha se
tornado deficitário. Isso significa que o superávit comercial não tem
conseguido fazer frente à gigantesca quantidade de riqueza que tem sido sugada
do país, na forma monetária.
20. Ademais, a clássica
transferência de valor por meio de intercâmbio desigual de mercadorias também
continua operando, apesar de que para muitos analistas – que ainda não
aprenderam a diferença entre valor e preço - seja “coisa do passado”.
21. Não obstante, a
aposta do governo tem sido em aumentar o saldo comercial por meio do aumento da
exportação dos produtos agrários, o que tem se revelado como uma verdadeira
ressatelitização da economia brasileira. Tal economia tem, cada vez mais, passado
a orbitar ao redor da economia chinesa. É flagrante demais para ser apenas
coincidência que a volta dos produtos primários como primeiro produto na pauta
de exportação tenha se dado juntamente com a ascensão da China como primeiro
parceiro comercial brasileiro, sendo que tudo isto se desenhou com a crise de
2008.
Mito
3: A “recente” desindustrialização do Brasil e o seu “neodesenvolvimento”.
22. A economia
brasileira, a despeito da propaganda oficial, segue sendo dependente e, ao que
tudo indica, cada vez mais subordinada ao desenvolvimento chinês. A fração mais
ligada ao setor industrial da classe dominante brasileira até ensaiou uma
ofensiva ideológica contra este movimento denunciando a suposta
desindustrialização brasileira no último período. Segundo esta tese, na verdade
um outro mito, a “forte e industrializada” economia brasileira estaria sofrendo
com o ataque especulativo do dólar e a concorrência chinesa. Mesmo sendo
verdade, isso não significa um movimento recente, mas um aspecto estrutural da
nossa economia e uma prova da manutenção das diretrizes neoliberais na atual
política econômica.
23. A tese da
desindustrialização não é uma novidade tupiniquim. Como quase tudo que passa na
cabeça de nossos analistas ela veio importada diretamente do pensamento dos
países centrais. Mais especificamente de uma análise do “insuspeito” Fundo
Monetário Internacional. Era a tentativa de explicar o fenômeno ocorrido nos
EUA, Europa e Japão que entre as décadas de 1970 e 1990 viram a porcentagem da
população empregada no setor manufatureiro cair em torno de 10%, na mesma
medida em que crescia a porcentagem da população empregada no setor de
serviços. Outro indicador utilizado foi o de valor adicionado pela indústria no
PIB que apresentou o mesmo movimento: diminuição da contribuição do setor
industrial e aumento do setor terciário. Trata-se, portanto, de nova importação
teórica sem a devida redução sociológica.
24. Em primeiro lugar,
antes de falar em desindustrialização temos que compreender corretamente o que
foi a nossa industrialização, pois ela não tem paralelo com a industrialização
dos países centrais. Ao contrário de lá, não tivemos uma revolução industrial
capitaneada por uma burguesia nacional que dominou toda a cadeia tecnológica e
integrou produtivamente grande parte de sua força de trabalho disponível. A
industrialização brasileira foi periférica e dirigida pelo estado,
especialmente durante a era Vargas. Este processo contou com a participação dos
monopólios internacionais, principalmente a partir da década de 50, logo após a
recuperação das economias centrais no pós-guerra. A industrialização brasileira
não foi capaz de superar a orientação exógena, e continuou apoiada sobre uma
pauta de exportação de baixo valor agregado. A dinâmica de nossa industrialização
sempre necessitou da realização de mercadorias via exportação dado que nosso
mercado interno é historicamente atrofiado pela super-exploração de sua força
de trabalho. Basta comparar o poder de compra de um trabalhador da mesma
transnacional no Brasil ou nos EUA; ou então, o lucro da General Motors nos
dois países para evidenciar este mecanismo em operação. A nossa indústria é um
apêndice dos conglomerados transnacionais. Como precisamente afirmou Darcy
Ribeiro, é uma industrialização recolonizadora.
25. Por isso, o arroubo
de ofensiva nacionalista dos industriais durou muito pouco. Bastou algumas
reuniões com o atual ministro de desenvolvimento, indústria e comércio
(Fernando Pimentel) para compreenderem que “teriam que aprender a viver com o
câmbio baixo”. Afinal, os industriais estão aproveitando muito bem o câmbio
baixo: a captação de recursos externos do setor privado aumentou violentamente
em conjunto com a importação de máquinas e bens de equipamento da China e dos
EUA. Este mecanismo de se endividar em dólar em troca de máquinas e bens de
equipamento permite aumentar a produtividade interna, elevar a quantidade
produzida sem aumentar a massa salarial.
26. Não obstante, com
esta ofensiva ideológica conseguiram algumas concessões e benefícios governamentais,
como isenção fiscal, proteção tarifária direcionada e novos benefícios
creditícios.
27. Por fim, os 3
indicadores mais utilizados para defender a tese da desindustrialização estão
sendo utilizados de maneira precária. Isto porque a formação bruta de capital
fixo, ou seja, a famigerada taxa de investimento não ultrapassa o nível de 20%
do PIB desde 1994. O mesmo acontece com a participação da indústria de
transformação no PIB que passou de 35% em 1985 para 18% em 1995 e desde então
nunca mais ultrapassou o teto de 20% do PIB. O mesmo movimento aconteceu com o
percentual da população economicamente ativa ocupada na indústria: queda
acentuada até 1995 e manutenção do mesmo nível desde então. Esses dados demonstram, portanto, que se
houve alguma desindustrialização ela não é recente. Ao contrário, ela está na
base do pacto de classe do plano real que mantêm a atual estabilidade.
28. Por que, então, a
burguesia industrial brasileira não reclama da desindustrialização desde 1994?
Porque defende com unhas e dentes a “santíssima trindade” - inflação, câmbio
flutuante e juros altos? Por uma razão muito simples: a burguesia industrial se
contenta com a posição de sócia subalterna do desenvolvimento dos países
centrais. A rápida arrefecida da sua ofensiva ideológica demonstrou quais eram
seus únicos objetivos: conquistar mais alguns privilégios estatais. Por isso
esta mesma burguesia que se diz contra a desindustrialização continua
importando massivamente máquinas e bens de equipamento do exterior; continua se
endividando gigantescamente; e se levanta contra qualquer tentativa do governo
de reestabelecer uma indústria de base, de tecnologia de ponta, sob a acusação
de “reestatização da economia”.
29. Portanto, esta tese
da desindustrialização revela o oportunismo da burguesia brasileira,
desinteressada e não identificada com um processo de desenvolvimento nacional e
autônomo. O que mais preocupa, no entanto, é que partidos de esquerda estejam
influenciando parte da classe trabalhadora a sair em defesa dos interesses
desta burguesia. Se a luta contra a desindustrialização capitaneada pela classe
trabalhadora não for tomada como parte de uma luta contra a burguesia ela será,
na verdade, uma luta contra os próprios trabalhadores.
30. Aqueles dados, por
sua vez, também ajudam a desmistificar uma segunda tese: a de que o atual
governo é neodesenvolvimentista. Desde
1994 a taxa de investimento, a de valor adicionado pela indústria ao PIB, e a
de pessoal ocupado na indústria de transformação mantêm-se praticamente estável.
Tampouco vimos acelerar a reforma agrária, urbana, universitária e bancária nos
moldes defendidos pelo desenvolvimentismo clássico da década de 1960.
31. Outra “novidade
neodesenvolvimentista” vangloriada pelo governo e pelos analistas de plantão da
economia é o chamado “dinamismo do mercado interno”. No entanto, sua origem
está numa combinação perigosa entre consumo e endividamento. De um lado, o
governo estimula a produção de bens como os produtos da “linha branca” e
automóveis favorecendo os grandes monopólios nacionais com renúncias fiscais,
debilitando assim as finanças do Estado; de outro, as famílias se postam “às
compras” lastreadas nas “facilidades” do crédito, ou seja, no endividamento.
Uma simples pesquisa demonstra que o endividamento médio dos brasileiros tem
crescido brutalmente nos últimos anos. E não poderia ser de outra forma, uma
vez que o salário percebido pela classe trabalhadora do país, por si só, é
insuficiente até para provê-la de mercadorias básicas da modernidade como fogão,
geladeira e televisão. Logo, o mecanismo que tem dado fôlego ao mercado interno
nos últimos anos traz pro país a solidez de um pântano, além de implicações
decorrentes como o aumento dos danos ambientais num contexto de manutenção da
lógica da dependência e de aprofundamento do caos nas cidades.
32. O atual centro do
debate “neodesenvolvimentista” – inflação, câmbio e juros – nunca foi o centro
do debate desenvolvimentista; da heterodoxia do pensamento econômico. O governo
petista não é neodesenvolvimentista simplesmente porque o neodesenvolvimentismo
é uma falácia. Não tem nada de desenvolvimentista. É puro oportunismo
ideológico e político que concorre para alimentar o discurso do “Brasil
Grande” juntamente com um conjunto de fatos levantados – como grandes obras,
PAC, a recepção da Copa do Mundo e das Olimpíadas – para alimentar a
fantasia de que o Brasil estaria se colocando na economia mundial como uma
grande potência que “dita os rumos”. Este mesmo movimento ideológico
apresenta-se no interior da esquerda brasileira. A apologia
neodesenvolvimentista, útil para os setores dominantes e governistas, aparece
no interior da esquerda com a tese de que o Brasil estaria se tornando uma
nação imperialista. Neodesenvolvimentismo por um lado e imperialismo por outro,
são, portanto, duas faces do mesmo movimento ideológico incapaz de perceber a
posição intermediária e dependente que nosso país ocupa. Todavia, ao contrário
da ideologia neodesenvolvimentista (que é útil às classes dominantes), a tese
do Brasil imperialista poderá levar a (pretensa) esquerda revolucionária
brasileira a erros gravíssimos.
33. O cenário ideológico
brasileiro oferece, portanto, várias opções para distrair as consciências
ingênuas. “A crise não chegou ao Brasil”, “o país está se desindustrializando”
e “o governo é neodesenvolvimentista”, são todas alternativas para manter nossa
consciência crítica alienada, sem enxergar os nossos reais problemas e
distanciando-nos das verdadeiras soluções. Isto porque interessa a todas as
frações da nossa classe dominante manter o atual governo simplesmente porque
ele tem sido fundamental para manter seu pacto de classe. Nunca antes na
história desse país os banqueiros nacionais e internacionais ganharam tanto; os
grandes monopólios produtivos estão subsidiados pelo lado fiscal e do crédito
além de aproveitarem as brechas da legislação para também acumular na esfera
financeira; o agronegócio, não obstante a famigerada elevação do preço das commodities,
continua sugando do Estado brasileiro gigantescas quantias anuais, revelando
que em vez de trazer superávits ao país está deixando nosso Estado deficitário.
34. Porém, é cada vez
mais evidente que a atual fase cíclica do capital afetou e afetará ainda mais o
Brasil. O funcionalismo público já está sentindo isso na pele e parte dele
sequer teve reajuste inflacionário no ano de 2011; os trabalhadores da
iniciativa privada também já tiveram diminuição no seu aumento de poder de
compra; os marginalizados estão cada vez mais percebendo que a sua participação
neste “neodesenvolvimentismo” é assessória e resumida ao assistencialismo. A
solução para a crise não está em construir modelos recauchutados da ideologia
neoliberal. Tampouco não há crise sem soluções, e ao que tudo indica esta não
será superada sem a abertura de uma nova vaga histórica de lutas
populares.
Mito
4: O “eterno” descenso de massas
35. Tem sido consagrado
em recentes análises de conjuntura que o país vive um profundo descenso do
movimento de massas. De fato não estamos vivenciando nenhum momento pré-revolucionário.
Porém, o que importa são as conseqüências, em termos de ação política,
derivadas deste tipo de leitura. A mais difundida é que, na medida em que
estamos num descenso do movimento de massas, não é possível ter iniciativa na
luta política, sendo que alguns ainda complementam que “é o momento de estudar
e formar quadros”.
36. Há o que dizer sobre
esta lógica. A primeira é que a tarefa de formação de quadros necessariamente é
permanente, não é restrita a conjunturas de baixa mobilização. Por outro lado,
um quadro não se forma apenas com estudo, pois mesmo sendo este imprescindível
é necessário que experimente a ação prática, o trabalho de organização de
massas nas mais diferentes e difíceis situações. O quadro se forma quando é
chamado a definir a política de sua organização, se responsabilizando e se
comprometendo. O concurso de estudo, ação política e vivência organizativa
forma o quadro, não apenas os cursos, que por mais necessários que sejam não
são suficientes. Apenas o estudo cria militantes pedantes, apenas a prática
cria voluntaristas sem reflexão. A teoria e a prática são tarefas em qualquer
situação, em qualquer conjuntura.
37.. Porém, algumas
organizações justificam sua inoperância com o argumento de que não é possível
fazer outra coisa senão “estudar” e “formar” quadros. Os mais honestos
defensores desta concepção acreditam que realmente não é possível acumular
força no descenso. O que resta, portanto, é estudar e manter “a chama acesa da
utopia”, sendo isso nada mais que uma postura religiosa sobre o processo
político. O que não percebem é que para cada conjuntura exige uma determinada
estratégia de atuação, pois não há acúmulo de força fora de uma estratégia. O
que existe não é a impossibilidade de ação política, mas a ausência de uma
estratégia por parte destas organizações.
38. Outro gargalo que
deve ser entendido se refere à relação entre a ação política e a conjuntura. É
puro determinismo acreditar que o descenso é impermeável à ação política. A
prática política estrategicamente e teoricamente embasada permite alterar a
conjuntura, acumular forças e romper com o descenso de massas. Não se trata de
voluntarismo, mas de intervir conscientemente dentro das condições existentes,
procurando alterá-las em benefício do objetivo.
39. É comum encontrarmos
análises de conjuntura que atribuem às políticas assistenciais um efeito
desmobilizador das massas. Em outras palavras, estas políticas pacificariam “os
debaixo”, obstruído qualquer possibilidade de ação da esquerda. O primeiro
problema deste tipo de análise é que a mesma superestima o alcance destas
políticas, atribuindo uma força que não possuem. Programas assistenciais estão
longe de garantir um nível de bem-estar que retiraria a possibilidade de
mobilização popular. O segundo se refere à concepção de trabalho político de
massas, ou como é conhecido “o trabalho de base”. O estilo tradicional de
“trabalho de base” foi elaborado em condições de profunda pauperização das
classes subalternas, trabalhando com alvos fáceis dentro das lutas econômicas.
Porém, qualquer alteração das condições de vida o torna obsoleto e não mais
responde ao seu propósito. Diante da falência deste estilo de trabalho de
organização popular, setores de esquerda atribuem o problema ao povo, ou ao
descenso do movimento de massas, criando justificativas elegantes teoricamente
para a própria miopia política.
40. “É necessário
retomar o trabalho de base”. Algo que é repetido como mantras por setores da
esquerda. Quem pode ir contra tal afirmação? No entanto, escondem a ausência de
uma política para que este instrumento tenha conteúdo e um novo método para que
seja eficaz. Toda linha de massas serve a uma linha política e está contida em
uma estratégia, do contrário são apenas palavras bonitas, consensuais e
inofensivas.
41. Este suposto
“retorno ao trabalho de base” se materializa, na prática, como rituais, uma vez
que as massas não respondem ao chamado das “vanguardas”, sendo então
“necessário que a mesma produza por ela mesma os atos”. Ou seja, que uma
minoria radical cumpra a função da classe. Este aspecto se expressa por meio de
campanhas nacionais artificiais, completamente deslocadas das necessidades e do
horizonte das maiorias. Da mesma forma os inúmeros atos e jornadas de luta
reforçam a lógica das manifestações como “espetáculos” e que em nada tem haver
com a organização popular cotidiana e persistente, apesar de ser algo de
fundamental importância para qualquer processo de transformação social. As ruas
não podem se tornar um picadeiro dos descontentes, que isolam e desmoralizam a
militância perante a massa, não podem ser lugar de rituais de sensibilização
dos governos e da sociedade para as causas populares. Esta postura, por mais
bem intencionada, ao contrário do que declara, está longe de representar os
interesses das classes trabalhadoras. Geralmente são atos que tendem a impor
determinada pauta política, sem, contudo, compreender e ser fiel ao momento
conjuntural. As mobilizações e a tomada das ruas devem ser produto de uma
condução afinada à realidade, naquelas situações em que os atos não se tornam
apenas desfiles, mas um imperativo político e moral de avanço ou defesa dos
interesses das maiorias. Para que as organizações políticas e movimentos
consigam entender a melhor forma de condução das mobilizações é preciso estar
inserido no cotidiano da classe, e construir a partir deste encontro as força
capaz de envolver as maiores frações do corpo social em torno de reivindicações
reais, que só assim poderão se transformar em fermento para a luta.
42. Os arautos do mito
do descenso de massas esquecem que os ascensos somente são aproveitados por
aqueles que estiverem melhores posicionados politicamente, geralmente aqueles
que tiveram fidelidade aos acontecimentos históricos. A ascendência das
mobilizações populares não é facilmente prevista, revoluções não se anunciam,
são vividas, e geralmente as condições de sua existência são verificadas a posteriori.
Por isso não se pode esperá-las, não se pode postergar o trabalho organizativo
até uma futura insurreição de massa, na qual os “esclarecidos revolucionários”
se apresentará mecanicamente como a direção da plebe rude. As massas não
aguardam as direções, sendo que a auto-proclamação de vanguarda somente serve
para satisfazer as expectativas e ansiedades da pequena burguesia radicalizada.
43. Também o oposto do
mito do descenso de massa parte do mesmo erro: o subjetivismo. Alguns
agrupamentos da esquerda tentam causar o ascenso das massas simplesmente
anunciando-o diuturnamente. Para estes,
por oportunismo consciente ou não, enxergam em cada situação um período
pré-revolucionário. Criam análises e discursos que são monumentos à ansiedade.
O resultado desta prática é claramente perceptível, as maiorias os enxergam
como alienígenas. Muitas das vezes este tipo de interpretação está apoiada em uma
leitura mecânica das obras revolucionárias, de um estilo doutrinário de
pensamento alheio à criação, que apresenta soluções pré-moldadas antes mesmo de
refletir sobre as questões que se colocam para o tempo presente. As respostas
para as questões atuais não podem ser produzidas em série, tão pouco serão
encontradas por meio da visita importuna às sinistras enciclopédias. Citações
não criam teoria, tampouco convencem as massas. Para se aproximar de uma
análise concreta é necessário partir do real. Somente assim é possível
compreender a situação da luta de classes e produzir a melhor política.
44. Não é certo que a
classe proletário-popular está adormecida, as lutas acontecem, porém em um
nível de consciência muito imediato. O que falta é uma melhor compreensão de
como elas estão se desenvolvendo, muitas vezes de forma subterrânea. Porém esta
compreensão não vem apenas dos estudos, mas da inserção no meio popular.
Desvendar
os mitos
45. As análises de
conjuntura são aproximações do real, assim, mitos e quaisquer outros tipos de
abstrações não são apropriadas a um esforço sério de interpretação da situação.
A conjuntura atual nos exige a capacidade de estabelecer parâmetros mais sólidos
para a ação.
46. A crise mundial é sistêmica e profunda e pode
inaugurar um período histórico novo que desafia as forças sociais
anti-capitalistas. É preciso ter consciência que o Brasil está inserido dentro
deste conjunto de mudanças globais, com as quais tem profunda interação. Neste
sentido, as respostas até agora apresentadas estão longe de oferecerem
alternativas contundentes aos constrangimentos causados pela deterioração da
ordem capitalista mundial. As contestações populares se generalizam, ainda que
pouco sólidas e órfãs de uma proposta alternativa. As organizações
revolucionárias podem contribuir na construção deste novo patamar de disputa
política, mas terão que se credenciar a partir da atuação consciente junto às
massas. O mundo não é mais o mesmo, a mudança não é apenas um imperativo moral,
mas uma exigência cada vez mais urgente.
Brasil, 05 de janeiro de
2012
contatobrigadaspopulares@gmail.com
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